CânonComo Saber Se Temos os Livros Certos na Bíblia Qualquer estudo do cânone deve eventualmente perguntar como os cristãos sabem quais livros a ela pertencem e quais não. Michael J. KrugerIlustrações de Peter Gurry. Fotos da iStock e Insight of the King4 Agosto, 2023 CompartilharFacebookTwitterLinkedInImprimir Nível Mesmo uma breve análise da natureza da Bíblia revelaria que ela não é como a maioria dos outros livros. Em vez de ser escrita (como na maioria dos casos) em um dado momento no tempo, no mesmo lugar e por um único autor, a Bíblia nos apresenta uma coleção diversa de livros, autores, períodos de tempo, culturas, idiomas e ênfases teológicas, todos reunidos em um só único volume. Um livro tão único levanta algumas questões únicas. Por que devemos pensar que esses livros em especial são os corretos? Por que esses 66 e nenhum outro? E como os cristãos poderiam saber tal coisa? É apenas um salto cego de fé? Aqui chegamos a um dos aspectos mais fundamentais do estudo do cânone—e que muitas vezes é negligenciado—a saber, se os cristãos têm motivos suficientes para saber quais livros pertencem e quais não. Agora, digo que esta é uma questão “negligenciada” precisamente porque a maioria dos estudos do cânone tende a se preocupar com outros assuntos. Normalmente, esses estudos lidam com o que podemos chamar de questões históricas sobre o cânone: quando os livros foram recebidos, quanto tempo levou o processo canônico e quando foi finalizado. E todas essas são questões importantes por si só. Mesmo assim, as questões epistemológicas não podem ser ignoradas. A mera catalogação de quando e como o cânone se desenvolveu não nos diz se temos os livros certos. E se não tivermos base para saber se temos os livros certos, nossa confiança na autoridade bíblica pode ser rapidamente abalada. Então, vamos considerar três atributos complementares que todos os livros canônicos têm – atributos que nos dizem que esses livros são dados por Deus. Qualidades divinas Se quisermos verificar se um livro foi escrito por um determinado autor humano, seria natural pegar o que sabemos sobre esse autor – estilo, tendências, características pessoais – e procurar essas qualidades no texto. Poderíamos dizer que procuramos as “marcas” desse autor. O mesmo acontece com um autor divino. Teólogos, desde os primeiros dias do movimento cristão, argumentam que as próprias qualidades ou “marcas” de Deus—no Latim, indicia—devem ser evidentes em qualquer livro que venha Dele. Exemplos de tais qualidades na palavra de Deus seriam beleza e excelência (Sl 19:8; 119:103), poder e eficácia (Sl 119:50; Hb 4:12–13) e unidade e harmonia (Nm 23:19; Tt 1:2; Hb 6:18). Receba novos artigos e atualizações em sua caixa de entrada. Leave this field empty if you're human: John Murray apresenta este acurado argumento: “se… a Escritura é divina em sua origem, caráter e autoridade, deve trazer as marcas ou evidências dessa divindade.” Em outras palavras, por meio dessas qualidades divinas, os cristãos reconhecem a voz de seu Senhor nas Escrituras. Como o próprio Jesus declarou: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (João 10:27). A essa altura, alguém pode contestar que todo esse esquema soa terrivelmente subjetivo. “Não vejo essas qualidades divinas”, podem dizer. “E se essas qualidades realmente existem, então por que tantas pessoas rejeitam a Bíblia?” “Os primeiros cristãos não discordavam até certo ponto sobre quais livros tinham essas qualidades?” Mas, a objeção ignora o ponto de que nem todos podem reconhecer com segurança essas qualidades espirituais devido aos efeitos noéticos do pecado (Rm 3:10–18). Os teólogos argumentam, portanto, que é preciso ter a ajuda do Espírito Santo—o testimonium spiritus sancti internum—para ver corretamente a palavra de Deus como ela é. Portanto—e este é um ponto importante—as qualidades divinas das Escrituras não são apenas uma criação subjetiva de nossas mentes. Não, essas qualidades estão real e objetivamente nas Escrituras. É só que é preciso ter os olhos abertos para vê-las. A título de ilustração, pode-se dizer que o incrédulo é espiritualmente surdo. Ele acha que pode ouvir se algo está “afinado” ou “desafinado”. E quando ouve a palavra de Deus, ele definitivamente a rejeita como “desafinada”. Mas, quando faz isso, ele assume que o problema está nas Escrituras e não em sua própria audição. Aliás, as próprias Escrituras dizem o contrário: “quem não tem o Espírito não aceita as coisas que vem do Espírito de Deus (…) e não é capaz de entendê-las, porque elas são discernidas espiritualmente” (1 Co 2:14). Recepção congregacional Mesmo que um crente possa se certificar se um livro vem de Deus pelas qualidades divinas do próprio livro, essa não é a única maneira de saber se um livro pertence ao cânone. Também podemos olhar para a maneira como a igreja, como um todo, respondeu a esses livros ao longo dos tempos. Em outras palavras, o testemunho do Espírito Santo não funciona apenas em um nível individual, mas opera principalmente a nível congregacional. E se o Espírito está trabalhando entre o povo de Deus coletivamente, então podemos olhar para o consenso do povo de Deus (tanto no presente quanto no passado) como um guia confiável para saber quais livros são Dele. Como Herman Ridderbos argumentou, “Cristo estabelecerá e construirá sua igreja ao fazer com que ela aceite exatamente este cânone e, por meio da assistência e testemunho do Espírito Santo, o reconheça como seu”.1Redemptive History and the New Testament Scriptures (Phillipsburg, NJ: P&R, 1988), 37. RelacionadosPor Que a Bíblia dos Protestantes e a Dos Católicos São Diferentes?John D. MeadeO Concílio de Niceia realmente Criou a Bíblia?John D. MeadeA Bíblia que Jesus LiaJohn D. Meade Agora, alguns esclarecimentos são necessários. Primeiro, dizer que o consenso da igreja é um guia confiável para quais livros são canônicos não significa que a igreja é infalível. Não, estamos apenas dizendo que a igreja responde de maneira confiável às qualidades divinas desses livros com a ajuda do Espírito Santo. De fato, podemos dizer que as qualidades divinas eram tão convincentes que, em certo sentido, esses livros se impuseram à igreja. Segundo, só porque o Espírito Santo está operando na igreja não significa que o consenso da igreja em torno desses livros seja instantâneo ou absoluto. Às vezes, temos uma expectativa excessivamente “imaculada” sobre a maneira como Deus trabalha no mundo, como se o Espírito Santo produzisse um acordo imediato em torno dos livros dentro de 72 horas após serem escritos. Mas a história normalmente não é tão organizada. Assim como qualquer outra doutrina, às vezes há desacordo. E leva tempo para as coisas se resolverem. Mas, eventualmente, a igreja chegou a um consenso. No primeiro século, parece que havia um amplo consenso sobre os livros do Antigo Testamento e, no quarto século, parecia haver um amplo consenso sobre os livros do Novo Testamento. Autores dignos de confiança O terceiro atributo que todos os livros canônicos compartilham é que eles são de autoria de agentes autorizados por Deus. Afinal, não é qualquer um que pode escrever um livro vindo de Deus. Esse indivíduo tem que ser capacitado pelo Espírito de Deus para ser seu porta-voz. De um modo geral, considera-se que o Antigo Testamento foi escrito por “profetas”, e o Novo Testamento por “apóstolos”. De fato, vemos esses dois agentes divinos—profetas e apóstolos—aparecerem em vários textos cristãos primitivos. Por exemplo, Pedro chama sua audiência para ouvir precisamente estas duas fontes: “para que vocês se recordem das palavras proferidas no passado pelos santos profetas e do mandamento de nosso Senhor e Salvador que os apóstolos ensinaram a vocês” (2 Pe 3:2). Temos boas evidências históricas (que não exploraremos por ora aqui) de que os livros em nossa Bíblia podem ser atribuídos diretamente a apóstolos/profetas ou pelo menos a uma situação histórica em que esse livro poderia reter razoavelmente os ensinamentos de um apóstolo/profeta. Por exemplo, aceitamos o Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) como vindos de Deus porque acreditamos que Moisés foi o autor. Da mesma forma, aceitamos livros como Romanos e Gálatas porque pensamos que o apóstolo Paulo foi o autor. E até aceitamos livros anônimos como Hebreus porque temos boas razões para pensar que o autor recebeu suas informações diretamente dos apóstolos (Hb 2:3–4; 13:23). Conclusão Existem várias maneiras, portanto, de saber que um livro vem de Deus. Algumas pessoas podem saber apreendendo as qualidades divinas dentro de um livro. Outros podem saber olhando para o consenso entre o povo de Deus através dos tempos. E outros podem saber considerando a identidade dos próprios autores humanos. Deve-se observar também que esses três atributos são complementares e se reforçam mutuamente. Se um livro tiver um atributo, ele terá todos os três. Por exemplo, se um livro foi escrito por um profeta divinamente inspirado, então certamente conterá “marcas” divinas dentro dele e também (no devido tempo) será reconhecido e recebido pelo povo de Deus pelo poder do Espírito Santo. Assim, se por acaso tivermos dúvidas sobre um desses atributos (digamos, a autoria de um livro), temos ainda dois outros atributos para nos dar segurança. Por fim, podemos ter grande confiança sobre os livros em nosso cânone bíblico. Os cristãos não estão dando um salto cego de fé quando afirmam que esses são os livros certos. Deus nos deu uma maneira de saber—na verdade, várias maneiras de saber—que esses livros são Dele.Notes1Redemptive History and the New Testament Scriptures (Phillipsburg, NJ: P&R, 1988), 37. Michael J. Kruger mkruger@rts.edu | + posts Mike Kruger (PhD, Universidade de Edimburgo) é presidente e professor em Novo Testamento e Cristianismo Primitivo no Reformed Theological Seminary em Charlotte, Carolina do Norte. Ele é o autor de vários livros, tendo sido traduzido para o português Os 10 Mandamentos da Esquerda Cristã. This author does not have any more posts.