TraduçãoO Dia em que a Bíblia se Tornou um Best-Seller Martinho Lutero não se propôs a produzir um best-seller. Mas há 500 anos, hoje, foi exatamente isso que ele fez. Jeffrey Kloha10 Agosto, 2023 CompartilharFacebookTwitterLinkedInImprimir Nível Nós sabemos exatamente quando a Bíblia se tornou o “livro mais vendido de todos os tempos”. Era 21 de setembro de 1522. Esta data era a abertura da feira anual do livro em Leipzig, na Alemanha. Em abril do ano anterior, Martinho Lutero se recusou a retratar seus escritos diante de Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, em uma assembleia convocada para examinar suas obras, conhecida como Dieta de Worms. De lá, ele foi segregado para o Castelo de Wartburg para sua própria proteção. Em onze semanas, ele completou a tradução do Novo Testamento do grego para o alemão. A partir daí, seu colega da Universidade de Wittenberg, Philip Melanchthon, editou a tradução. Dois empresários em Wittenberg, Lucas Cranach, o Velho, e seu sócio Christian Doering, então contrataram o impressor Melchior Lotter, o Jovem, para apressar a conclusão deste Novo Testamento em alemão a tempo da feira do livro—instalando até mesmo prensas temporárias em sua propriedade para garantir a conclusão. Entre 3.000 a 5.000 cópias foram feitas, empacotadas e levadas às pressas para Leipzig para a feira do livro. Lutero traduzindo a Bíblia em 1521, conforme retratado por Eugène Siberdt. Wikimedia Commons Um best-seller imediato O livro foi um sucesso. Todas as cópias deste Novo Testamento em alemão se esgotaram antes que a feira terminasse, uma semana depois. A partir daí, o Novo Testamento alemão, de Lutero, se espalhou pela Europa. Uma segunda impressão foi iniciada imediatamente e lançada em dezembro. Uma versão pirata foi impressa em Basileia antes do final de 1522. No ano seguinte, um total de doze reimpressões autorizadas e sessenta e seis não autorizadas apareceram em toda a Alemanha e Europa — centenas de milhares de cópias vendidas em pouco mais de doze meses. De repente, a Bíblia se tornou um best-seller. A Bíblia de Lutero. O Novo Testamento Alemão. Agora, tudo isso pode ser considerado uma nota de rodapé na história, exceto que esta pequena Bíblia de Lutero ainda influencia a maneira como lemos as Bíblias nos dias de hoje. Do formato ao conteúdo, à legibilidade e às notas explicativas, tudo foi moldado pelo Septembertestament. Como esse sucesso instantâneo aconteceu? Lutero não foi o primeiro a comercializá-la. De fato, a primeira Bíblia alemã impressa apareceu em 1466, cinquenta e cinco anos antes da obra de Lutero. Dezessete versões no total apareceram antes de 1522. Portanto, não havia simplesmente uma demanda reprimida pela Bíblia em alemão que Lutero aproveitou. Em vez disso, foi a teologia e a notoriedade de Lutero, combinadas com um estilo de tradução legível e um formato físico e visual projetado para ajudar o leitor a entender o texto—pelo menos o texto como Lutero queria que o leitor o entendesse—que fez esta Bíblia se tornar um best-seller. Castelo de Wartburg, onde Lutero terminou o seu Novo Testamento alemão em 1522. Foto de Ashley Van Haeften A façanha de Lutero contextualizada Nos primeiros 1500 anos da igreja, a Bíblia, ou melhor, os vários livros e histórias da Bíblia, eram acessados por quase todas as pessoas não ao lê-las, mas ouvindo-as. As pessoas ouviam a Bíblia na adoração, cantavam em salmos, hinos e cânticos espirituais. Eles foram ensinados em sermões e ensino catequético, viram seu conteúdo retratado em ícones e eventualmente vitrais, assistiram-no em peças de mistério e peças da paixão (algumas das quais ainda são realizadas hoje). Mas possuir uma Bíblia, segurar uma Bíblia—seja em papiro, pergaminho ou papel—não era nada comum. Quase todas as cópias físicas da Bíblia até os anos 1500 foram produzidas para uso em igrejas, mosteiros e para o clero. Algumas pessoas ricas tinham livros devocionais lindamente decorados, que muitas vezes continham os salmos, mas a Bíblia como a conhecemos simplesmente não era acessível—nem era percebida a sua necessidade de ser acessível—para a grande maioria das pessoas. Mesmo Gutenberg não produziu um best-seller porque o que ele produzia parecia e, até certo ponto, custava o que um manuscrito latino da Bíblia custava na década de 1450. Gutenberg podia produzir sessenta cópias no tempo que um copista levava para produzir um manuscrito. A primeira edição de 1454 foi produzida em cerca de 160 a 180 exemplares: ¾ deles em papel e ¼ em velino. As cópias em papel custavam trinta florins numa época em que o salário de um funcionário do banco Médici rendia entre quatorze e cinquenta florins por ano. Então, se você tivesse um ótimo emprego em 1450, uma Bíblia de Gutenberg custaria aproximadamente o salário de um ano—e você ainda teria que saber ler em latim. A maioria dos exemplares foram adquiridos por ordens religiosas ou indivíduos abastados para doação a igrejas e instituições eclesiásticas. Embora tenha sido um momento crucial na história ocidental (a revista Time o classificou como o evento mais significativo dos últimos 1000 anos), Gutenberg não mudou imediatamente a maneira como as pessoas acessavam a Bíblia. RelacionadosA Bíblia que Jesus LiaJohn D. MeadeCinco Decisões que Todo Tradutor da Bíblia Deve TomarPeter J. GurryO Concílio de Niceia realmente Criou a Bíblia?John D. Meade Mas no início do século XVI, as pessoas começaram a querer ler as Escrituras por si mesmas. E estudiosos reformadores de toda a Europa trabalharam para torná-las acessíveis a todas as pessoas, em seus próprios idiomas. Erasmo de Roterdã foi um dos maiores estudiosos clássicos de todos os tempos. Ele produziu várias primeiras edições de textos da antiguidade, incluindo o primeiro Novo Testamento grego publicado em 1516. Mas ele não o chamou de “Novo Testamento”. Ele o chamou de “Novum Instrumentum”, uma nova ferramenta. A edição tem grego em uma coluna e latim na outra, mas não a Vulgata, o texto latino comumente usado, mas uma nova tradução que Erasmo argumentou ser mais precisa para o grego. Ele queria tornar o texto grego mais acessível aos estudiosos e teólogos do ocidente que realmente não conheciam o grego. E para o que serviria essa ferramenta? Ele expõe isso em seu prefácio, que ele chamou de paraclesis ou “exortação” logo no início de sua nova ferramenta: O sol pertence a todos; a ciência de Cristo é exatamente a mesma. Oponho-me totalmente ao fato de que as escrituras divinas não devam ser traduzidas para a língua nativa, para serem lidas pelo leigo; é como se o ensinamento de Cristo fosse tão misterioso que apenas um punhado de teólogos pudesse entendê-lo, ou como se a fortaleza da religião fosse construída com a ignorância que a Igreja impôs ao homem comum. Desejo que mesmo as mulheres mais humildes leiam os evangelhos e as Epístolas Paulinas. E gostaria que fossem traduzidos em todas as línguas para que pudessem ser lidos e compreendidos não apenas por escoceses e irlandeses, mas também por turcos e sarracenos… Isso resultaria no lavrador cantando alguma porção no arado, o tecelão cantarolando ao movimentar sua lançadeira, o viajante aliviando o cansaço de sua viagem com histórias dessa fonte. Lutero usou a segunda edição (impressa em 1519) da “nova ferramenta” de Erasmo para criar um Novo Testamento para fazendeiros e tecelões alemães e, ao fazê-lo, criou um grande sucesso. A audiência para este Novo Testamento alemão era o próprio povo alemão. Onde a Bíblia de Gutenberg estava fora do alcance de quase todas as pessoas, tanto pelo custo quanto pelo fato de estar em latim, uma cópia encadernada do Novo Testamento de Lutero custava um único florim: o salário de dois meses de um professor ou o preço de um bezerro. Um livro para apontar para Cristo Parece evidente para nós hoje que a Bíblia deveria ser traduzida. Mas para Lutero, a tradução da Bíblia não era um fim em si mesmo. Não foi simplesmente “vamos divulgar a Bíblia por aí e ver o que acontece”. Tampouco estava interessado em um texto para estudo acadêmico, pois as edições em grego, hebraico e latim estavam disponíveis para isso, se alguém quisesse. Em vez disso, Lutero queria um Novo Testamento por meio do qual os indivíduos pudessem ouvir a Palavra de Deus diretamente, sem a mediação da igreja ou de um padre. Dito de outra forma: o objetivo de Lutero era que as pessoas ouvissem “a mensagem de Deus sobre Cristo”. O objetivo de Lutero era que as pessoas ouvissem “a mensagem de Deus sobre Cristo”. Na linguagem de Romanos 10: “Consequentemente, a fé vem por ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo”. Lutero expressa isso em sua introdução ao Antigo Testamento publicada mais tarde em 1534: “Se, então, você interpretar bem e, seguramente, colocar Cristo diante de você; pois Ele é o homem a quem tudo se aplica.” Mas mesmo o Novo Testamento, que Lutero reconheceu que deveria ser suficientemente claro, também pode ser mal interpretado e, portanto, o leitor precisa de ajuda para ouvir o Evangelho com clareza. Lutero produziu este livro, simplesmente, para apontar para Cristo. Para dar às pessoas acesso, por si mesmas—com a sua orientação—às promessas de Deus. Vemos isso na página de rosto de uma Bíblia de Wittenberg de 1524 com sua descrição simples e Cristo na cruz. A página de rosto do Antigo Testamento na Bíblia de Lutero de 1524 com Cristo na cruz. Museu da Bíblia BIB.003838. Todo o propósito de Lutero em traduzir o Novo Testamento, então, e cada aspecto da tradução e o conteúdo do volume foram projetados para pregar Cristo e a mensagem do Evangelho. Isso explica os novos recursos do Septembertestament. Era um texto como nenhum outro antes dele. Traduziu um texto grego para o vernáculo pela primeira vez na Europa Ocidental desde a Vulgata. Incluía prefácios e notas para garantir que os leitores ouvissem o Evangelho. E até mesmo a sequência dos livros do Novo Testamento foi alterada para se adequar ao objetivo de Lutero de levar as pessoas a confiar nas promessas de Cristo. Isso pode ser surpreendente. Um lema da Reforma é Sola Scriptura! Pelas Escrituras somente! Sem tradição ou interpretação. Mas a própria Sola Scriptura está realmente a serviço do princípio central da Reforma: “Somente Cristo!” (Solus Christus). Lutero colocou as Escrituras na linguagem do povo para que, somente pelas Escrituras, eles pudessem ouvir a Cristo e seu evangelho, e assim receber a salvação. Recursos para guiar o leitor a Cristo O formato físico e os recursos adicionais que Lutero e seus colaboradores adicionaram a este Septembertestament ajudaram a atingir esse objetivo. Estes não eram sem precedentes, e certamente não sem controvérsia, como veremos. E há uma justaposição importante entre o desejo de Lutero de que a Palavra seja ouvida clara e diretamente pelas pessoas em seus próprios termos e, ao mesmo tempo, a adição de vários recursos para garantir que o leitor obtenha a interpretação correta. Aqui vou me concentrar em quatro deles, muitos dos quais ainda são usados em nossas Bíblias hoje. 1. Texto e tradução Como observado, Lutero usou a segunda edição (1519) do Novum Instrumentum de Erasmo como seu texto base. O paralelo bilíngue grego-latino deu a Lutero acesso não apenas ao grego, mas também à tradução latina de Erasmo. Além disso, Erasmo publicou uma notável e histórica análise acadêmica, palavra por palavra do Novo Testamento grego em 1516, chamada Anotações. Ele ampliou significativamente esse recurso em 1519 e sabemos que Lutero usou as duas ferramentas, pois há lugares onde as traduções seguem exatamente as explicações de Erasmo. Lutero, portanto, seria o primeiro a usar essas “novas ferramentas” para trazer um texto grego do Novo Testamento para uma língua vernácula. Receba novos artigos e atualizações em sua caixa de entrada. Leave this field empty if you're human: Dados os manuscritos disponíveis para ele, o texto grego de Erasmo era bastante semelhante ao texto usado por séculos na igreja de língua grega. Edições posteriores de seu texto básico passaram a ser chamadas de Textus Receptus, mais comumente disponíveis após meados do século XVI nas edições editadas pelo teólogo reformado Teodoro de Beza. Esse texto foi a base da Bíblia de Genebra (1557, 1560) e da Versão Autorizada King James de 1611. A edição de 1519 de Erasmo consertou muitos dos erros de digitação e edição de 1516. Notoriamente, porém, nenhuma edição incluiu a cláusula joanina em 1 João 5:7-8: “Porque três são os que dão testemunho no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, e a água e o sangue; e estes três concordam em um” (KJV). Esta passagem foi adicionada por Erasmo em sua edição de 1522, e Lutero estava ciente da versão. Mas Lutero nunca a incluiu em sua Bíblia alemã, incluindo a Bíblia completa de 1534 e a edição de 1545, a última impressa durante a vida de Lutero. De fato, Lutero em outro lugar faz um comentário, observando que ela foi acrescentada pelos teólogos ortodoxos para contrariar a teologia ariana. O texto grego foi a base para Lutero, mas sua preocupação mais profunda era que o texto fosse legível e compreensível para todas as pessoas. Seguir o estilo e vocabulário grego ou latino não comunicaria claramente a mensagem do Novo Testamento. A defesa de sua obra de tradução contra os críticos católicos, escrita em 1530, reforça esse objetivo. Não precisamos perguntar ao latim literal [escrito] como devemos falar alemão, como fazem esses burros [papistas]. Em vez disso, devemos perguntar à mãe em sua casa, às crianças na rua, ao homem comum no mercado. Devemos ser guiados por sua linguagem, pela maneira como falam e fazer nossa tradução de acordo. Então eles entenderão e reconhecerão que estamos falando alemão com eles. Nesse tratado, Lutero forneceu vários exemplos de como o alemão idiomático de sua tradução é mais eficaz do que uma tradução presa a outras línguas: Por exemplo, Cristo diz: Ex abundatia cordis os loquitur [Mt. 12:34]. Se eu seguir esses burros, eles vão colocar o original diante de mim literalmente e traduzi-lo assim: “Aus dem uberfluss des hertzen redet der mund” [do excesso de coração sua boca fala]. Diga-me, isso é falar alemão? Que alemão poderia entender algo assim? O que é “o excesso de coração”? Nenhum alemão pode dizer isso; a menos que, talvez, ele estivesse tentando dizer que alguém era muito generoso, ou muito corajoso, embora mesmo isso ainda não estivesse correto. “Excesso do coração” não é mais alemão do que “excesso da casa”, “excesso do fogão” ou “excesso do banco”. Mas a mãe em casa e o homem comum dizem assim: “Wes das hertz vol ist, des gehet der mund über” [O que enche o coração transborda a boca]. Isso é falar um bom alemão do tipo que eu tentei, embora infelizmente nem sempre com sucesso. O latim literal é um grande obstáculo para falar um bom alemão. O exemplo mais radical—e alguns podem dizer, escandaloso—é sua tradução de Romanos 3:28, onde seu texto acrescentou a palavra “somente”. So halten wir nun dafür, daß der Mensch gerecht werde ohne des Gesetzes Werke, allein durch den GlaubenPortanto, agora sustentamos que uma pessoa é justificada sem as obras da lei, somente pela fé. O texto grego não contém um equivalente a “somente” nesta passagem. Como diz a KJV: “Portanto, concluímos que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei”. Lutero defende sua tradução, novamente no Sendbriefe de 1530: Aqui em Romanos 3, eu sabia muito bem que a palavra solum [somente] não está no texto grego ou latino; os papistas não precisavam me ensinar isso. É um fato que essas quatro letras s-o-l-a não estão lá. E esses cabeças-duras as encaram como vacas diante de um novo portão. Ao mesmo tempo, não percebem que ela transmite o sentido do texto; ela pertence lá se a tradução deve ser clara e vigorosa… É da natureza da língua alemã acrescentar a palavra allein para que a palavra nicht ou kein seja mais clara e completa… Na verdade, o próprio texto e o significado de São Paulo o exige e exige urgentemente. Pois nessa mesma passagem ele está lidando com o ponto principal da doutrina cristã, a saber, que somos justificados pela fé em Cristo sem quaisquer obras da lei. Para Lutero, o sentido do texto—inegavelmente influenciado pela importância dada a essa passagem para o ensino da justificação pela fé—era mais importante do que os vocábulos gregos ou latinos nos textos de base. O objetivo de Lutero era criar um Novo Testamento que pregue Cristo, compreensível diretamente às pessoas em uma linguagem que elas possam entender. Esta não é uma tradução que busca capturar a sensação de um texto antigo. Não procura soar “autêntica” no discurso de um oficial romano no livro de Atos, por exemplo. Em vez disso, a tradução procura falar diretamente às pessoas comuns em seus próprios termos. É um discurso direto, como se Deus estivesse falando alemão. Como se Deus estivesse pregando Cristo diretamente para eles, em seus corações, sem sacerdotes, sem tradição, sem mais ninguém necessário para a pessoa ouvir a Deus e ganhar a Cristo. O objetivo de Lutero era criar um Novo Testamento que pregue Cristo, compreensível diretamente às pessoas em uma linguagem que elas possam entender. 2. Prefácios Uma segunda ferramenta que Lutero usou em seu Septembertestament foi afixar prefácios aos quatro Evangelhos e depois individualmente para cada livro subsequente. Ele não foi o primeiro a acrescentar prefácios; prólogos são encontrados em manuscritos latinos e gregos do Novo Testamento, que fornecem informações históricas e cronológicas e, ocasionalmente, argumentam contra correntes teológicas heréticas. Mas Lutero toma uma direção diferente. Ele acrescentou prefácios a cada livro, não modelados em seus antecessores, mas projetados para dar ao leitor uma compreensão básica do conteúdo que eles encontrarão no livro—ou, mais precisamente, o que Lutero quer que eles encontrem no livro. No prefácio inicial dos Evangelhos e do Novo Testamento, ele explica diretamente o seu propósito para esta ferramenta. Seria correto e adequado que este livro aparecesse sem prefácio e sem qualquer outro nome além do de seus autores, com apenas seu próprio título e sua própria linguagem. Mas muitas interpretações e prefácios caóticos levaram o pensamento dos cristãos a um ponto em que ninguém mais sabe o que é Evangelho ou Lei, Antigo ou Novo Testamento. A necessidade exige, portanto, que haja um anúncio, ou prefácio, pelo qual o homem simples possa ser reconduzido das velhas noções ao caminho certo e ensinado o que deve esperar neste livro, para que ele não busque leis e mandamentos onde deveria estar buscando o Evangelho e as promessas de Deus. O propósito evangelístico de Lutero fica claro aqui: ele quer que o leitor busque o Evangelho e as promessas de Deus, e não leia o Novo Testamento como um livro de regras a serem obedecidas. Isso fica mais claro em seu prefácio a Romanos. Embora a maioria dos prefácios seja bastante breve, três livros individuais têm prefácios estendidos: Romanos, Tiago e Apocalipse. Romanos é uma exceção, mas o motivo é explicativo: mostra quanta ênfase Lutero colocou no conteúdo e ensino desse livro. Seu prefácio é muito mais longo do que qualquer outro: dez páginas inteiras de introdução, e isso para um livro que, traduzido, tem apenas dezenove páginas. O prefácio de Gálatas, que talvez tenha um ensino explícito de fé ainda mais claro sobre e contra a lei, tem uma introdução de menos de meia página, com um texto de sete páginas. Efésios tem um prefácio ainda mais curto: menos de quatorze linhas impressas para seis páginas de texto, e isso na carta que diz: “Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie”. Isso parece claro. E, no entanto, Lutero confia em Romanos para carregar o peso de explicar toda a Bíblia e o Evangelho: “esta epístola é de fato a parte principal do Novo Testamento e o mais puro Evangelho e é digna não apenas que todo cristão a conheça palavra por palavra, de cor, mas se ocupe dela todos os dias, como o pão diário da alma.” Essa abordagem não era apenas inovadora, mas também eficaz. John Wesley, o famoso evangelista, pregador e teólogo inglês do século XVIII, afirma que seu “coração foi estranhamente aquecido” e que ele foi convertido ao Evangelho lendo o prefácio de Lutero a Romanos—veja bem, não lendo Romanos em si, mas lendo o prefácio de Lutero a Romanos. Os outros dois longos prefácios, para Tiago e Apocalipse, têm um tom decididamente diferente, como veremos a seguir. 3. Notas Lutero também incluiu notas e explicações nas margens de sua edição. Novamente, esta não é uma prática nova. Manuscritos medievais frequentemente continham citações de teólogos ou glosas, ou seja, breves notas explicativas e interpretativas ao longo do texto. Mas o objetivo de Lutero não é repetir o melhor ensino e instrução do passado. Suas notas também refletem seu objetivo de ajudar o leitor a confiar em Cristo e no Evangelho. Por exemplo, esta é uma imagem de Romanos 3. Observe como as margens são completamente amplas com cerca de 75% de Bíblia e 25% de Lutero. As notas de Lutero na margem ocupavam quase um quarto da página. Crédito da foto Você quase pode ouvir Lutero suplicando ao leitor na margem: Note bem que ele diz que todos vocês são pecadores, etc. Este é o aspecto principal e o ponto central da epístola e de todas as Escrituras. Ou seja, que são todos pecadores aqueles que não foram redimidos pelo sangue de Cristo e justificados pela fé. Portanto, agarre-se a este texto, porque de acordo com ele toda obra, mérito e boas ações permanecem sendo puro dom e honra de Deus (Sl 84:11). 4. O Cânone do Novo Testamento de Lutero Talvez o mais controverso é que Lutero organizou a sequência dos escritos do Novo Testamento para refletir suas opiniões sobre a clareza com que esses livros ensinavam o Evangelho. O índice deste Novo Testamento reflete isso claramente. A lista de Lutero dos livros do Novo Testamento. Foto Todos os vinte e sete livros do Novo Testamento estão presentes. Mas apenas vinte e três livros estão numerados. Quatro livros são deslocados para o final, sem numeração, como uma espécie de apêndice: Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse. Lutero colocou esses livros por último e acrescentou prefácios alertando os leitores sobre certas seções e passagens. Para Lutero, Hebreus parecia não permitir o arrependimento se alguém pecar após o batismo; Judas parecia ser um resumo de 2 Pedro (com a adição de histórias não canônicas); o Apocalipse é “uma profecia oculta e muda e ainda não chegou ao proveito e fruto que deve dar aos cristãos”. Tiago, no entanto, recebe as críticas mais duras. É “totalmente oposta a São Paulo e todo o resto das Escrituras, atribui justiça às obras”. Lutero conclui que “esta falha leva à conclusão de que não é obra de nenhum apóstolo” e é, portanto, uma “epístola de palha”. Esse arranjo dos escritos do Novo Testamento é exclusivo de Lutero, além de sua influência na tradução do Novo Testamento de William Tyndale de 1525, que por sua vez é seguida em inglês por Coverdale (1535) e Matthew (1537). Da Grande Bíblia de 1539, no entanto, todas as traduções inglesas usam a sequência de livros comumente conhecida hoje. Lutero, no entanto, manteve esse formato até a última edição da Lutherbibel publicada durante sua vida em 1545. Uma Bíblia para o povo Lutero procurou criar uma Bíblia não para ser um best-seller, mas por meio da qual os indivíduos ouviriam Deus falando diretamente com eles em seu mundo, em seu tempo, em seu lugar. Uma Bíblia que era a Palavra de Deus—mais precisamente, Deus falando. Não uma ferramenta passiva que fica em uma prateleira, mesa ou mesmo um altar. Mas a palavra de Deus ativa, falando, buscando, audível e impactante. Tudo o que Lutero fez, desde o estilo de tradução até a página de rosto, a sequência dos livros e as notas, fora projetado para levar as pessoas a Cristo. Esta é uma Bíblia delineada não apenas para tornar claras as palavras da Bíblia, mas para tornar clara a mensagem da Bíblia, a mensagem da Bíblia da qual Lutero e a Escola de Wittenberg estavam convencidos: que somente Cristo e sua obra, recebida somente pela fé, era o que Deus estava falando em sua palavra. Jeffrey Kloha jeff.kloha@mbible.org | + posts Jeff Kloha (PhD, University of Leeds) é Diretor de Curadoria do Museum of the Bible em Washington, D.C., onde gerencia os departamentos de Educação, Iniciativa Acadêmica, Exposições, Curadoria e Coleções. Antes disso, ele serviu como professor de Novo Testamento e depois como reitor no Concordia Seminary, em St. Louis, Missouri. This author does not have any more posts.