CânonPorque Temos Somente Quatro Evangelhos Na Bíblia A despeito de teorias da conspiração, há boas razões históricas e teológicas para que a igreja reconheça quatro—e somente quatro—Evangelhos. C. E. HillRetratos dos quatro evangelistas, de GA 773 (século X).10 Agosto, 2023 CompartilharFacebookTwitterLinkedInImprimir Nível Em 2006, foi apresentado ao mundo um antigo Evangelho recém-descoberto—que fora excluído da Bíblia cristã e considerado como perdido. O entusiasmo de muitos era palpável. “Isso muda a história do cristianismo primitivo”, disse um estudioso. “Isso é importante”, exclamou outro, que continuou com predições, “muita gente vai ficar incomodada”. Uma década e meia depois, a grande onda que foi esse alvoroço midiático se tornou uma marola. O Evangelho de Judas não mudou a história do cristianismo primitivo e talvez as únicas pessoas incomodadas estão incomodadas precisamente porque o Evangelho de Judas não mudou a história do cristianismo primitivo. Ainda assim, a republicação deste Evangelho outrora perdido nos lembra que um dia existiram mais Evangelhos do que apenas os quatro que nos são familiares. Como é que esses quatro e somente esses quatro foram parar em nossas Bíblias? O caminho mais direto a uma resposta Há muitos caminhos que poderíamos tomar em direção a uma resposta para essa pergunta e muito já foi escrito sobre o assunto. Mas talvez o melhor caminho—e o mais direto—para compreender por que a Igreja tem esses quatro e apenas esses quatro Evangelhos seja simplesmente lendo-os; e então ler todas as versões alternativas conhecidas e deixar que os livros falem por si. Eu suspeito que a maioria descobrirá aquilo que a Igreja como um todo tem confessado há muito tempo, a saber, que é o retrato de Jesus que esses quatro Evangelhos apresentam, que é a mensagem vivificadora que eles carregam que separam esses quatro de todos os outros. O caminho mais direto para compreender por que a Igreja tem esses quatro Evangelhos é deixar que os livros falem por si. Reconheço que esse método pode não soar como o mais acadêmico, o mais “objetivo” ou historicamente embasado. As ideias da maioria das pessoas sobre Jesus, alguém poderia argumentar, já foram formadas, ao menos até certo grau, pelos conhecidos quatro Evangelhos e, portanto, comparar o conteúdo de Evangelhos alternativos poderia resultar simplesmente em uma validação de vieses pré-concebidos. Muitos, então, insistiriam que foquemos na atestação histórica. A atestação histórica Se assim fizermos, veremos que, enquanto outros Evangelhos eram conhecidos e ocasionalmente citados no início (digamos, até o final do século II), nenhum outro se aproxima dos quatro em termos de aparição inicial, amplitude em distribuição geográfica ou no consenso de vozes reconhecendo sua veracidade e status canônico. Nenhum, nem de perto. Isso não significa que os outros além desses quatro nunca foram lidos. Alguns Evangelhos aparentemente tiveram certa popularidade regional ou somente entre alguns grupos. O Evangelho de Pedro era conhecido no oriente, mas Irineu, no ocidente, que compilou uma coletânea de livros alternativos, demonstrou não conhecê-lo. Irineu, por sua vez, conhecia o Evangelho de Judas (provavelmente uma versão daquele republicado em 2006), mas nenhuma outra fonte, contemporânea ou posterior, sequer o menciona. Além disso, a maioria, se não todos esses outros Evangelhos, parecem depender de um ou mais dos quatro. Alguns, como o Evangelho de Tomé, eram alardeados por conter “as palavras secretas” de Jesus, reconhecendo assim que suas “palavras públicas” já eram amplamente conhecidas pela Igreja. RelacionadosO Concílio de Niceia realmente Criou a Bíblia?John D. MeadeO Dia em que a Bíblia se Tornou um Best-SellerJeffrey KlohaO Quão Importante É um Novo Papiro com as Palavras de Jesus? Michael W. Holmes O fato é que, ao contar o número absoluto de citações ou alusões ao Evangelho no século II, conseguimos identificar claramente os quatro em primeiro lugar. Por que não os “os dois mais” ou “os cinco mais citados”? O motivo fala por si. Desde pelo menos metade daquele século, quatro Evangelhos—Mateus, Marcos, Lucas e João—são vistos formando uma unidade natural, a ser lida e interpretada em conjunto, todas provenientes do próprio Deus. Essa é a noção do “Evangelho Quádruplo”. O autor da obra do final do século II, hoje conhecido como Fragmento Muratoriano, por exemplo, não se incomoda com as diferenças entre os quatro, “já que pelo único Espírito soberano todas as coisas foram declaradas em todos [os Evangelhos]” (linhas 19–20). Essa convicção de um cânone de quatro Evangelhos até produziu pelo menos três materiais inovadores e customizados: harmonias evangélicas, sinopses e códices. Inicialmente, por volta dos anos 170–175, um homem chamado Taciano criou a mais antiga harmonia evangélica, até onde sabemos, conhecida como Diatessarão, que almejava combinar o conteúdo de todos os quatro em uma única narrativa. Alguns acadêmicos supõem que Taciano pretendia substituí-los por sua composição sintética. Se assim for, seu esforço ainda pressupõe a existência de um Evangelho quádruplo. Porém, afirmar que essa era a intenção dele não é certo. Alguns cristãos usaram o tomo de Taciano como uma ajuda para estudar a vida de Jesus, com ou sem os quatro Evangelhos separadamente. Em segundo lugar, sabemos de uma tentativa no século III de criar uma sinopse baseada nesses mesmos quatro Evangelhos. Amônio de Alexandria organizou um livro com quatro colunas; a primeira com o texto contínuo de Mateus e as outras três com as passagens paralelas dos outros Evangelhos. No século IV, Eusébio de Cesareia usou essa ferramenta para criar um conjunto de tabelas listando os paralelos entre os Evangelhos, acompanhados pelas primeiras “referências cruzadas”, colocadas nas margens do texto. Esse engenhoso sistema criado por Eusébio dependia da ampla adoção de uma terceira e inovadora tecnologia em informação que surgira muito antes: o códice dos quatro Evangelhos. A tecnologia avançada do códice eventualmente tornou possível reuni-los em um único volume. Curiosamente, nunca encontramos nenhum dos quatro compilados com qualquer outro Evangelho. Receba novos artigos e atualizações em sua caixa de entrada. Leave this field empty if you're human: Não podemos dizer com precisão quando a ideia dos quatro Evangelhos como canônicos primeiramente se estabeleceu. Mas, antes do final do século II, o Fragmento Muratoriano (provavelmente da Itália), Irineu na Gália, Clemente em Alexandria e Tertuliano em Cartago—todos conheciam a mesma coleção de quatro Evangelhos somente. Isso fala a favor de uma recepção muito mais inicial durante o século II. Mas por quê, podemos perguntar, esses quatro formaram uma unidade natural? Por que os cristãos os receberam como um conjunto, como um cânone? Parte da resposta tem a ver com suas origens únicas. Suas origens únicas Jesus, é claro, nunca predisse que haveria quatro e somente quatro Evangelhos autoritativos. Mas pode-se dizer que ele estabeleceu um limite natural na quantidade de Evangelhos autoritativos a serem escritos. Ele fez isso ao chamar e comissionar um número restrito de pessoas como suas testemunhas, seus apóstolos, para falar em seu nome. Os quatro Evangelhos que constam agora em nossas Bíblias foram recebidos pela igreja como fruto direto da missão apostólica—escritos pelos próprios apóstolos ou por seus assistentes pessoais. Isso equivale a dizer que foram recebidos como os que Jesus havia autorizado, assim como os que os profetas do Antigo Testamento haviam pré-autorizado! As Escrituras do Antigo Testamento prometiam um messias libertador para Israel e para o mundo. Essas mesmas Escrituras também predisseram que uma mensagem de libertação viria de sua aparição física. “Nos últimos dias”, as boas novas viajariam de Jerusalém até os confins do mundo. “Pois, a lei sairá de Sião, de Jerusalém virá a palavra do Senhor…” (Is 2:2–3, Mq 4:1–2 e também Is 52:7). Essa mesma passagem, dentre outras, pode ter estado na mente de Jesus quando, no dia de sua ressurreição, ele disse que as Escrituras profetizaram “que em seu nome seria pregado o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (Lucas 24:47, veja também At 1:8). Como se daria essa missão de boas novas que fora profetizada? Iniciou assim que Jesus disse “vocês são testemunhas destas coisas” (Lucas 24:48), e então semanas depois os designou para receber poder “quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1:8). Em outras palavras, a nova “lei e palavra do Senhor” profetizada fluiu de Jerusalém para o mundo como resultado da autorização de Jesus a um pequeno grupo de apóstolos para falar em seu nome (Lucas 10:16), para possuir as chaves do reino dos céus (Mt 16:19; 18:18), para edificar alicerces (Rm 15:20, 1Co 3:10–12), para se tornar fundamento sobre o qual ele iria construir sua igreja (primeiramente dito a Pedro em Mt 16:18, mas se estendendo a todos os apóstolos em Ef 2:20, Ap 21:14). O papel único e irreproduzível dos apóstolos, de receber o verdadeiro evangelho de Jesus e, em seguida, entregá-lo de forma oral e escrita à igreja—estabelecendo seu fundamento—foi amplamente reconhecido pela igreja primitiva (veja, por exemplo, 1 Clemente 42: 1–2, Aos Filipenses 6:3, de Policarpo, e Contra Heresias, de Irineu, 3.11.9). Todos os apóstolos morreram, mas a autoridade do seu testemunho ainda perdura, nos escritos que eles deixaram para a igreja. Todos os apóstolos morreram, mas a autoridade do seu testemunho ainda perdura, nos escritos que eles deixaram para a igreja. Para permanecer fiel à missão apostólica original, a igreja deve cumprir seu ministério em constante conformidade com esse alicerce escrito. Os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João foram recebidos como elementos constitutivos do legado permanente dos apóstolos desde muito cedo. As origens únicas desses Evangelhos e seu uso contínuo na igreja, desde o momento em que foram publicados, explicam por que sua atestação inicial supera em muito a de qualquer outro. O poder da auto-autenticação No entanto, há um aspecto final da explicação sobre um Evangelho “em quatro partes” e é aquela sugerida como “o caminho mais direto” à resposta: o poder de auto-autenticação desses quatro Evangelhos. Em meados de 160 d.C, Justino de Roma testificou que as palavras de Jesus (por ele conhecidas graças aos quatro Evangelhos) “possuem uma certa reverência em si e são capazes de constranger aqueles que se desviam do caminho reto; enquanto o descanso mais doce é concedido àqueles que as praticam com diligência” (de Diálogo com Trifão). De novo e de novo, a confissão feita por Pedro no Evangelho de João tem sido ecoada por indivíduos e igrejas que se encontram com o Jesus dos quatro Evangelhos: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna. Nós cremos e sabemos que tu és o Santo de Deus” (João 6:68–69). Nestes quatro Evangelhos a Igreja ouviu a voz do seu Pastor, como ele disse que ouviriam (João 10:27). C. E. Hill chill@rts.edu | + posts Charles E. Hill (PhD, University of Cambridge) é professor emérito do Reformed Theological Seminary em Orlando, onde serviu como Professor John R. Richardson de Novo Testamento e Igreja Primitiva até se aposentar em 2021. Ele é o autor das obras Who Chose the Gospels? Probing the Great Gospel Conspiracy e The Early Text of the New Testament, ainda não traduzidas para o português. This author does not have any more posts.